Danilo Matoso Macedo
ago.2000
Texto adaptado de trabalho escrito para a disciplina “Teoria da arquitetura e do urbanismo: introdução à hermenêutica ” ministrada no curso de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da EAUFMG pelo professor Dr. Carlos Antônio Leite Brandão.
Or. Dr. Luiz Alberto Passaglia
1. Apresentação
Por volta de 1955, a arquitetura de Oscar Niemeyer sofreu uma brusca mudança facilmente perceptível. Num primeiro momento, seus projetos se caracterizavam pela exuberância cromática e formal, traduzida em formas esconsas, curvas, serpenteantes, revestidas por murais de artistas plásticos diversos e pastilhas coloridas, combinados a materiais diversos como o aço, a madeira ou o vidro, criando jogos de transparências e texturas inusitados. A partir de 1955 – notadamente a partir do projeto para o museu de arte de Caracas – sua arquitetura passa a operar com menos materiais e formas mais definidas: operando menos no campo dos materiais de revestimento – agora quase sempre reduzindo-o a mármore branco, concreto aparente ou reboco pintado associados a generosos panos de vidro – e mais na associação entre formas claramente perceptíveis, com volumes precisos.
Para o presente trabalho proponho uma investigação dos textos escritos por Oscar Niemeyer durante este processo visando a uma melhor compreensão dos fatores que motivaram o arquiteto a esta repentina mudança de atitude.
Na tentativa de compreender melhor o teor desta mudança de atitude, pretendo ainda confrontar os textos escritos entre 1955 e 1961, considerados como um corpus , a outro corpus textual produzido por Niemeyer numa etapa posterior, considerando esta segunda como uma conclusão final do arquiteto acerca de determinado tema. Esta tarefa comparativa deverá ocorrer fazendo com que o sentido dos textos circule em seus diversos pólos: “o do autor, o do leitor, o da obra, o da tradição e o do público.” [1]
2. Fontes e referências teóricas
Os textos de Oscar Niemeyer que abordaremos foram, em sua totalidade, publicados na revista Módulo – por ele fundada e mantida.
O corpus inicial é definido pelo conjunto de textos produzidos pelo arquiteto entre 1955 – ano de lançamento do primeiro número da revista – e 1962 – ano de publicação de seu último texto antes do fechamento da revista pelo regime militar em 1964.
O segundo corpus, característico de uma postura teórica mais consolidada de Niemeyer consiste numa série de sete textos intitulada Os Problemas da Arquitetura, publicados da Módulo entre 1978 e 1980[2]. Este conjunto de textos foi selecionado entre os inúmeros outros escritos pelo arquiteto por tratar-se de um conjunto coeso e fechado de temas que pretendia abordar o problemas da arquitetura de modo abrangente – o que não exclui os demais; porém sempre referenciados nos textos selecionados.
Sobre o tema do discurso de Niemeyer é fundamental para nosso trabalho ainda o livro de Miguel Alves Pereira: Arquitetura, Texto e Contexto: o Discurso de Oscar Niemeyer[3] . Preciosa abordagem do conjunto de escritos do arquiteto, cuja análise auto-intitulada “marxista”[4], vai além da compilação bibliográfica notável rumo a um melhor entendimento do panorama crítico-teórico da arquitetura moderna brasileira – Moderna aqui entendida como a denominação das arquiteturas de vanguarda surgidas a partir da década de 20 no Brasil.
A respeito da hermenêutica da arquitetura baseio-me principalmente no texto de C. A. Leite Brandão: Introdução à Hermenêutica da Arte e da Arquitetura.[5] Bem como em notas de aula e outros textos do mesmo autor não publicados.
Parte deste cerceamento inicial é ainda a definição de nosso objeto de interpretação: os textos de Oscar Niemeyer. Este é o nosso objeto arquitetônico tratado, e não seus projetos ou obras construídas, aos quais faço referência apenas como elementos auxiliares – parte do pólo histórico – da tarefa hermenêutica deste texto mesmo.
3. O círculo hermenêutico em niemeyer
A chave de entrada para o universo dos textos de Oscar Niemeyer nos dá ele mesmo:
“Terminados os desenhos e cortes, começo a escrever o texto explicativo. É minha prova dos nove, pois se não encontro argumentos para explicar o projeto, é natural que o reveja, pois lhe falta alguma coisa importante.” [6]
Seus textos são marcados por este caráter reflexivo ativo, fazendo com que seu sentido circule entre o texto e o objeto arquitetônico. O texto serve de apoio ao projeto. Não como acessório, mas como doador de sentido: a interpretação do texto pelo pólo do próprio autor modifica o desenho, a forma da obra projetada, co-nascendo com ela.
Oscar Niemeyer começou a projetar em 1935, trabalhando no escritório de Lúcio Costa, porém só
“começa a escrever sistematicamente a partir de 1955, quando funda a revista de arquitetura Módulo. Antes, sua produção resume-se a alguns artigos esparsos para revistas especializadas e, principalmente, para revistas do Partido Comunista Brasileiro.”[7]
Dentre estes “artigos esparsos”, o único apontado por Pereira em sua bibliografia é um pequeno texto na Oeuvre Compléte de Corbusier.[8] Mais do que perguntar a razão do silêncio de quase vinte anos, cabe aqui indagar-nos qual a razão da quebra deste silêncio. O que desperta no arquiteto a necessidade repentina de levar a público suas opiniões e métodos de trabalho?
Acredito que a quebra deste silêncio reside, principalmente, na necessidade de resposta a críticas externas e que, a médio prazo, foi esta reelaboração do modo de trabalhar e pensar a arquitetura um dos principais fatores de modificação da arquitetura de Niemeyer.
As críticas externas foram as seguintes: em 1953, o artista plástico e crítico de arte suíço Max Bill vem ao Brasil para expor em São Paulo, lançando ferrenhas críticas à arquitetura brasileira. O conteúdo destas críticas germinou num conjunto de pareceres intitulado Report on Brazil, publicado em outubro de 1954 pela revista americana Architectural Review[9] tendo, entre outros, como autores: Walter Gropius, Ernesto Rogers e o próprio Max Bill. Sua importância e teor veremos a seguir, já focalizando o pólo interpretativo da tradição crítica no discurso de Niemeyer. Ou seja, veremos a influência direta desta crítica sobre a atitude do arquiteto, e como ele passa a ver sua própria obra através do olhar desta crítica, relativizando-a.
3.1. O PÓLO RELATIVISTA: a centelha da crítica externa no discurso de Niemeyer
A crítica de Max Bill foi a mais divulgada e a que mais repercussão teve no meio arquitetônico, talvez por isso mereça ser vista com maior cuidado. Iniciada numa longa entrevista à revista Manchete – de circulação nacional – em 1953, a opinião do suíço veio de modo mais sistematizado no texto da Architectural Review, onde começa por declarar que “a arquitetura de seu país corre o risco de cair num perigoso academicismo anti-social”[10]. Para explicar seu ponto de vista, o crítico recorre ao que ele classifica de quatro elementos da arquitetura brasileira: a forma livre, a fachada de vidro, os brise-soleils e o pilotis. Elementos estes derivados do princípios acadêmicos da vanguarda européia do início do século (principalmente, é claro, da arquitetura de Le Corbusier) e, segundo ele, transformados sem reflexão ou razão.
A forma livre – elementos curvos e orgânicos derivados da pintura de Kandinsky, da escultura de Hans Arp :
A forma orgânica pode, de fato, ter grande valor funcional, tornando um edifício mais útil. Mas isso é a exceção. Hoje, a maioria das aplicações de formas livres é puramente decorativa. Como tal, elas não têm nada a ver com arquitetura séria[11]
A fachada de vidro que provou não ser realmente aplicável “na ausência de ar condicionado e uma técnica cuidadosa,”[12] cuja ausência foi contornada por Le Corbusier com a criação do brise-soleil. E seu uso no Brasil novamente é criticado: “aqui em São Paulo há exemplos de uso do brise-soleil nos quatro lados de um edifício”.
A crítica mais feroz do autor se faz quanto ao uso indiscriminado dos pilotis corbusianos no Brasil, onde o elemento de liberação da circulação no térreo por vezes sequer chega a fazê-lo num “abuso de liberdade formal e emprego mais irreal o possível do pilotis. Aqui está a anarquia máxima construída, selva crescendo no pior sentido“[13]. As ásperas palavras parecem dirigir-se aos pilares em “V” inclinados tão em voga no país à época.
Max Bill aponta ainda em sua entrevista à revista Manchete[14] para os elementos murais inseridos na arquitetura brasileira, freqüentemente elaborados por artistas plásticos renomados:
Sou contra a pintura mural na arquitetura moderna. O mural só teve razão de ser numa época em que poucos sabiam ler; sua função sempre foi ilustrativa, isto é, narrar, através de imagens facilmente reconhecíveis, aquilo que a maioria do povo não podia aprender através da linguagem escrita. Hoje existem outros meios – como por exemplo os jornais, as revistas, o cinema – capazes de dar a todos, e com muito maior eficiência, uma visão completa e moral da vida[15]
São inúmeras as críticas nesse sentido dirigidas não só à arquitetura brasileira, mas a diversos segmentos da arquitetura mundial, sendo a tônica a mesma: “Boa arquitetura é aquela na qual cada elemento desempenha um papel determinado e nenhum elemento é supérfluo”.[16] Ao passar pelos outros autores do Report on Brazil, o mesmo argumento permanece, passando pela ponderação, como no caso de Ernesto Rogers:
Pessoalmente, eu me sinto mais à vontade com a arquitetura mediterrânea, mas isso não me dá o direito de esnobar ou condenar criticamente a expressão artística de um poeta que, por razões culturais e geográficas, prefere seguir seu próprio caminho[17]
e pelo juízo de valor puro e simples, como no caso do japonês Hiroshi Hoye – um dos comentadores do Report on Brasil: “A construção em concreto possui qualidades e belezas próprias – porque não deixá-lo aparente às vezes?”[18]
Talvez, a síntese das críticas as dê o próprio Hoye – apesar de sua pouca projeção e importância no cenário mundial:
Eles [os edifícios brasileiros] parecem muito ‘fantásticos’ para o meu gosto. Eles parecem se criados principalmente para impressionar e aparecer bem em fotografias. Problemas técnicos, qualidade de equipamento e até mesmo planejamento racional parecem ser ignorados na tentativa de produzir um espetáculo, e serviços como água, eletricidade e ar condicionado freqüentemente são pouco trabalhados[19]
Lembremo-nos, porém, da premissa básica da crítica de Max Bill: “Se critico a arquitetura brasileira é porque ela me fornece matéria para tal, o que significa dizer que ela é importante. Aliás, os erros nela apontados são os mesmos em quase todos os países”.[20]
A reação dos arquitetos brasileiros bem a descreve Miguel Pereira:
Foi mal recebido, pois eram ainda os anos de louvação de nossa arquitetura, no Brasil e no exterior, além do que – considere-se, num país sem nenhuma tradição de crítica arquitetônica – um hábito estranho à comunidade de nossos arquitetos. (…)
Lucio Costa encarregou-se de formular a elegante e acerba resposta. Ninguém teve sorte. O pensamenteo crítico não foi privilegiado ainda dessa vez e, lamentavelmente, hibernaria nas duas décadas seguintes.[21]
De fato, o artigo comentando as críticas publicado no primeiro número da revista Módulo mistura terror com desdém: Criticada a Arquitetura Brasileira. Rica Demais – Dizem,[22] vindo a resposta de Niemeyer no mesmo artigo – seu primeiro texto na revista:
Sobre estas críticas, meu amigo, nada tenho a dizer; nem me interessa mesmo contestá-las. Somos um povo jovem, com uma tradição de cultura ainda em formação – o que nos expõe naturalmente mais à crítica daqueles que se julgam representantes de uma civilização superior. Mas, também, somos simples e confiantes em nossa obra. O suficiente, pelo menos, para apreciar esta crítica, ainda quando parta de homens que não possuem, profissionalmente, as credenciais necessárias. É claro que a autoridade de Gropius é diferente, embora cumpra ressalvar a pouca afinidade que temos com sua técnica e fria sensibilidade. Consideramos a arquitetura obra de arte e que, como tal, só subsiste quando se revela espontânea e criadora. Trabalhamos com o concreto armado, material dócil e generoso a todas as fantasias. Tirar dele beleza e poesia, especular sobre suas imensas possibilidades é o que nos seduz e apaixona, profissionalmente. E por estas razões é que tanto nos identificamos com a obra de Le Corbusier. Obra de harmonia, onde as características de criação e beleza são as constantes fundamentais.
E foi justamente dentro desse espírito de libertação e criação artística que a nossa arquitetura conseguiu em quinze anos (1938-1953) o prestígio mundial de que inegavelmente hoje disputa[23]
Se à primeira vista a reação de Niemeyer possui um tom blasé, ignorando a crítica, a análise do conjunto de seu discurso escrito aponta para sutilezas no próprio texto de que Niemeyer não só preocupou-se com as críticas recebidas, mas que elas foram a centelha inicial de seu discurso: o motivo a partir do qual ele passou a escrever sistematicamente. Este fato comprova-se não só pelo curto artigo citado na íntegra acima, mas pelo teor dos artigos que se seguiram.
O segundo texto de Niemeyer, de 1956, intitula-se Problemas Atuais da Arquitetura Brasileira. Nele, o arquiteto já começa por apontar que uma “estranha insatisfação apossou-se ultimamente de alguns dos nossos arquitetos”,[24] colocando a crítica em dois grupos:
O primeiro grupo é constituído por aqueles que, impressionados com as teorias tradicionalistas, almejam uma ‘arquitetura baseada na tradição e cultura de nosso povo’; e o segundo, pelos que se mostram alarmados com o baixo nível de nossas construções modernas, e reclamam soluções mais simples e racionais. A ambos respeitamos (…) . Deixando aqui este conflito de opiniões, segui para a Europa, onde mantive, durante todo o tempo de minha viagem, a preocupação de tomar contato com colegas estrangeiros, para com eles debater os problemas profissionais que nos são comuns.(…) Não desejando dar ao assunto uma importância descabida, quero me limitar a aproveitá-lo naquilo que ele apresenta de honesto e positivo.
A nossa arquitetura moderna tem certamente na falta de conteúdo humano a principal razão das suas deficiências, refletindo – como não poderia deixar de fazê-lo – o regime de contradições sociais em que vivemos e no qual ela se desenvolveu.
Dirigida a classes dominantes pouco interessadas em economia arquitetural – pois o que desejam realmente é ostentar riqueza e luxo. (…)
Dentro desse ambiente restrito, exercemos durante vinte anos a nossa profissão, limitada em geral a casas burguesas, construções para o governo, edifícios de renda e alguns conjuntos residenciais[25]
Aqui não vemos o Niemeyer impermeável às opiniões diversas à sua – como ele mesmo faz sempre questão de propagandear – mas um arquiteto que recebe as críticas externas com juízo adequado e que sobre elas passa a refletir de modo acertado e o mais imparcial possível. No decorrer do texto, seu olhar sobre a produção nacional possui a mesma severidade das críticas dos estrangeiros. Oscar assume uma posição paternal e messiânica, apontando para mais além da crítica:
É verdade, e isso começa a inquietar, que a grande maioria das nossas construções apresenta um baixo nível arquitetônico, atingindo mesmo aspectos grotescos, e até ridículos, pelo emprego inadequado de certos materiais e pelo abuso de formas, muitas vezes extravagantes e impróprias. Este fato, apesar de grave, é fácil de ser explicado; realmente, o sucesso da arquitetura moderna no Brasil foi de tal ordem, que em pouco tempo tornou-se ela a nossa arquitetura corrente e popular.
Tudo isso, porém é uma espécie de ‘moléstia de crescimento’, que devemos olhar sem surpresa, compreensivamente, procurando por meio de uma pertinaz campanha didática combater e eliminar[26]
O que eu demonstrei aqui, através da citações diretas de textos do próprio Oscar Niemeyer, é que seu discurso sistematizado teve por motivo inicial a crítica internacional de arquitetura a ele dirigida. O que pro-moveu seu fazer teórico foi a visão externa, foi o ponto de vista relativo de outros teóricos. Com isso não quero apontar um limite do texto do arquiteto, ao relativizar o motivo de seu atividade. Aponto apenas para o fato de que o sentido de seu texto circula também pelo pólo da consideração crítica de outros autores sobre seu trabalho, ao contrário do que se acredita – vimos mesmo que esta é a visão de Miguel Alves Pereira, na passagem citada acima.
E esta crença não é pouco fundamentada: Oscar realmente reafirma constantemente sua ignorância olímpica às críticas alheias, usando como arma preferida seu reconhecimento profissional internacional e principalmente a desqualificação de seus críticos diante de si mesmo: “E meu trabalho prosseguiu indiferente às críticas inevitáveis dos que tudo examinam com a minúcia de que só a mediocridade é capaz. Bastava-me lembrar de Corbusier a dizer na rampa do Congresso, em Brasília: ‘Aqui há invenção’“.[27] As razões que lavaram-no a este tipo de postura foram as mais variadas e foge ao escopo deste trabalho encontrá-las. Talvez dentre elas, a mais forte tenha sido a impermeabilidade de seus supostos críticos a sua resposta.
Acredito que Niemeyer passou a escrever devido às críticas sofridas e balizado pelos problemas nelas levantados. Acredito também que o processo de reflexão desencadeado pela necessidade de elaboração desse discurso foi uma das principais causas de sua mudança de atitude ao projetar. A demonstração deste argumento exponho no seguinte capítulo.
3.4. O PÓLO DO OBJETO: a adoção de uma disciplina didática na obra de Niemeyer
Como vimos, em seu segundo texto, Niemeyer fala de uma “pertinaz campanha didática” que se destinaria à educação dos arquitetos menos esclarecidos sobre os parâmetros da arquitetura moderna. A meu ver, esta campanha se deu de dois modos: através de seus textos – aqui, nosso objeto de interpretação; e através de seus projetos. Este segundo caracterizou-se exatamente pela mudança no modo de projetar de Niemeyer.
A partir da reflexão acerca de seus trabalhos e da arquitetura brasileira como um todo, Niemeyer parece tomar consciência de sua real importância no panorama nacional. A partir disso, tenta fazer com que sua obra seja modelar, livre das moléstias de crescimento que assolavam a arquitetura nacional. E esta intenção ele torna clara em palestra aos estudantes da Faculdade Nacional de Arquitetura, quando também expôs seu projeto para o Museu de Caracas:
(…) expor com franqueza e simplicidade as razões de ordem técnica e artística que orientam nossos trabalhos. Esta atitude, a meu ver, deveria ser adotada como norma habitual. Realmente, se o arquiteto, na hora de estudar os seus planos de arquitetura, levasse em conta essa necessidade, suas soluções seriam naturalmente mais apuradas, justas e realistas. A preocupação de tudo Ter que explicar posteriormente, constituiria uma espécie de controle à sua imaginação e à sua fantasia, disciplinando as idéias surgidas, dentro das condições objetivas de cada problema. Com isso, não se limitaria nem o ímpeto nem a força criadora, indispensáveis às verdadeiras obras de arte – garantir-se-ia, ao contrário, maior unidade, maior equilíbrio e maior realismo ao trabalho. (…) É possível estabelecerem-se certas normas capazes de ordenar o planejamento dentro de uma linha racional, lógica e equilibrada. Para isso, seria necessário a adoção de alguns princípios básicos: que a solução seja resultante das condições específicas de cada problema, das condições locais, topográficas e climatéricas, das condições funcionais e programáticas, da técnica e dos materiais em uso. Dentro deste critério, a arquitetura seria forçosamente de melhor nível técnico e, quando possível, se servida de força criadora, uma obra de arte. (…) Esta a razão do apelo que faço a vocês, estudantes de arquitetura, no sentido de se familiarizarem com as novas possibilidades técnicas e suas tendências atuais, de modo a encontrar amanhã, na elaboração de seus planos, não a solução publicada na última revista de arquitetura, mas aquela capaz de garantir ao seu trabalho um conteúdo novo, próprio e definido. O projeto que hoje apresento foi estudado dentro deste espírito.[28]
Aqui encontramos a confirmação de que Niemeyer realmente se propunha a atuar de modo didático em seu discurso, que é nosso objeto de análise propriamente dito, bem como em sua obra: demonstrando através dela os princípios que propunha. Vemos aqui a extrema simplicidade de proposta que, no entanto, constitui-se em formidável exercício de inclusão. Inclusão das características locais como determinantes, em oposição ao International Style proposto por Phillip Johnson, inclusão das inovações técnicas, em oposição ao regionalismo exacerbado, inclusão, por fim, da necessidade de ser obra de arte, o que passaria a conferir um estatuto superior à obra de arquitetura.
Vemos que sua ênfase na simplicidade, honestidade e controle racional à fantasia formal do arquiteto vem ao encontro das críticas de Max Bill, e como, até nos detalhes, como a referência às revistas de arquitetura, as preocupações de Oscar derivam dos temas lançados nas críticas estrangeiras. Vemos, por fim, que ele passa a expor à comunidade arquitetônica os seus parâmetros de projeto, o que forçosamente impõe-lhe um maior rigor e atenção a estes princípios no desenvolvimento deste.
A preocupação de Niemeyer com esta espécie de “parametrização” sistematizada da arquitetura brasileira surge de modo mais contundente e voltado ao objeto arquitetônico no texto texto publicado no ano seguinte: Considerações sobre a Arquitetura Brasileira.
Aqui, seus objetivos didáticos tornam-se claros e balizados pelo conceito de unidade arquitetônica. Este conceito torna-se uma constante em seu vocabulário a partir de então. No entanto, ao falar de unidade arquitetônica, Oscar não a define, mas parece apoiar-se num conceito já fixado, a partir do qual ele desenvolve sua atividade explicativa:
Quando se trata de ‘unidade arquitetônica’, é comum o apelo a uma arquitetura discreta e sóbria, solução simplista que a muitos ocorre, no esquecimento da impossibilidade de impedir a alguns arquitetos esse estado de inquietação e procura, responsável pelo progresso e prestígio da nossa arquitetura. O conveniente, portanto não é limitar sua força criadora, mas dar às soluções novas uma explicação adequada, de maneira a impedir sua utilização de forma imprópria e desvirtuadora.
Para isso, uma campanha de esclarecimento deve ser conduzida com simplicidade quase didática, com exemplos fáceis de compreender e comprovar, sem citações eruditas e devaneios literários. Esta campanha não poderia pretender, é evidente, a solução radical do problema da unidade arquitetônica, pois para isso Ter-se-ia de resolver em primeiro lugar as questões urbanísticas, a ordenação dos espaços e volumes, a distribuição da terra etc. Poderá, porém, garantir às novas construções melhor equilíbrio, evitando certos erros, lamentavelmente hoje generalizados, a dar um triste e falsa idéia das nossas possibilidades profissionais.[29]
A seguir, Niemeyer disseca problemas projetuais específicos do vocabulário formal da arquitetura brasileira, relacionando-os segundo os seguintes elementos: pilotis, colunas em “V” e “W”, arcos, coberturas, fachadas, formas livres, fachadas inclinadas, cores; todos devidamente ilustrados com croquis do autor e tomando seus projetos por paradigmas. É notável a coincidência entre os tópicos abordados como problemas da arquitetura de então e os tópicos apontados por Max Bill. Notável ainda á o modo como Niemeyer orienta sua utilização, direcionando sua aplicação sempre com simplicidade, coerência e grandeza na aplicação. Assim, Oscar exorciza, por exemplo, o uso das formas livres – tão criticadas em seu teor decorativo por Max Bill -: trata-se, portanto de uma espécie de engano de escala: soluções justas, quando feitas com largueza – péssimas, quando reduzidas a miniaturas[30]
E conclui:
Estas as considerações que desejava fazer sobre nossos problemas arquiteturais, e, se repetidamente citei obras minhas o fiz com o intuito superior de melhor esclarecer meus pontos de vista e dar às soluções que vêm surgindo uma certa ordem cronológica. Sempre considerei justo que os menos experientes ou mais jovens se influenciem profissionalmente. É uma lei humana e normal, da qual não podemos fugir e que devemos ver como legítima expressão de apreço. Mas acho, também, que quando há excesso, quando as influências se transformam em forças negativas, cabe uma explicação. Uma explicação que só visa ao interesse da Arquitetura.[31]
O arquiteto assume aqui o seu papel de destaque dentro do panorama nacional, conforme havíamos descrito, conferindo à sua obra o valor que ela realmente possuía e tentando justificar seu procedimento até então. Lembremo-nos de que, neste ponto, o Brasília Palace Hotel e o Palácio da Alvorada – suas primeiras obras no Panalto Central – já tinham seus anteprojetos prontos, os quais ainda sofreriam diversas modificações antes de serem construídos.
Oscar silenciaria por dois anos, envolvido que estava com a elaboração dos projetos da nova capital do país. Voltaria à tona em 1958, com um depoimento conclusivo para o argumento que aqui apresento:
As obras de Brasília marcam, juntamente com o projeto para o Museu de Caracas, uma nova etapa no meu trabalho prifissional. Etapa que se caracteriza por uma procura constante de concisão e pureza, e de maior atenção para com os problemas fundamentais da arquitetura
Essa etapa, que representa uma mudança no meu modo de projetar e, principalmente, desenvolver os projetos, não surgiu sem meditação. Não surgiu como fórmula diferente, solicitada por novos problemas. Decorreu de um processo honesto e frio de revisão de meu trabalho de arquiteto.
Realmente, depois que voltei da Europa, após haver – atento aos assuntos do ofício – viajado de Lisboa a Moscou, muito mudou minha atitude profissional.32
Vemos, portanto, como a concatenação dos fatos apresentados motivou o arquiteto à sua mudança de atitude ao projetar, talvez na mais radical guinada de sua carreira.
No texto, o arquiteto começa por autocrítica, a qual une definitivamente os argumentos dos críticos estrangeiros à sua mudança de atitude. A autocrítica vem na forma de reservas à arquitetura brasileira, e consta dos seguintes tópicos de relação causal:
. conteúdo social – “Sem uma justa distribuição da riqueza o objetivo básico da arquitetura, ou seja, seu lastro social, estaria sacrificado”[32]
. impotência da arquitetura diante deste quadro – “Encarava a arquitetura como complemento de coisas mais importantes, e mais diretamente ligadas à vida e à felicidade dos homens”[33]
. negligência pessoal – “aceitava trabalhos em demasia, executando-os as pressas, confiante na habilidade e na capacidade de improvisação de que me julgava possuidor”[34]
. descuido com certos projetos – adotando “uma tendência excessiva para a originalidade, no que era incentivado pelos próprios interessados”[35]
E conclui:
“Isso prejudicou em alguns casos a simplicidade das construções e o sentido de lógica e economia que muitas reclamavam.(…)Não pretendo, naturalmente, com estes comentários iniciar um processo de autodestruição, nem atribuir aos meus trabalhos feição depreciativa. Vejo-os, pelo contrário, como fatores positivos dentro do movimento arquitetural brasileiro, ao qual deram, na ocasião oportuna, por seu elan e sentido criador, uma contribuição efetiva que até hoje caracteriza esse movimento“[36]
Postas suas razões diretas, verifiquemos, pelas palavras do arquiteto, qual o teor das mudanças em seu trabalho profissional:
.”Redução sistemática de trabalhos no escritório e recusa sistemática daqueles que visem apenas a interesses comerciais”[37]
. A adoção de uma série de “normas que buscam a simplificação da forma plástica e o seu equilíbrio com os problemas funcionais e construtivos”[38]
As normas seriam as seguintes:
. “Soluções compactas, simples e geométricas”
. “Problemas de hierarquia e de caráter arquitetônico”
. “As conveniências de unidade e harmonia entre os edifícios”
. “Que estes [os edifícios] não mais se exprimam por seus elementos secundários, mas pela própria estrutura, devidamente integrada na concepção plástica original”[39]
Passando a evitar:
.”as soluções recortadas ou compostas de muitos elementos, difíceis de se conterem numa forma pura e definida”
.”os paramentos inclinados e as formas livres que, desfigurados pela incompreensão e inépcia de alguns, se transformam muitas vezes em exibição ridícula de sistemas e tipos diferentes”[40]
Esta é a abordagem direta do objeto arquitetônico em seu discurso, que apresentamos neste capítulo a circulação do discurso de Oscar Niemeyer pelo pólo do objeto, através da qual, ele acaba por assumir um caráter ao mesmo tempo crítico e normativo.
Com esta abordagem, pretendo trazer à tona a real e benéfica influência da crítica à arquitetura de Oscar Niemeyer. No entanto, não é minha intenção colocar esta seqüência de fatos em relação biunívoca de causa e efeito. Lembremo-nos que trata-se de uma tarefa interpretativa a nossa. E se o que nos interessa é desvendar o sentido dos textos de Niemeyer, cumpre ainda enxergar outros pólos pelos quais este sentido circula. Ou seja: cumpre ainda analisar a relação do texto com o arquiteto mesmo, em termos biográficos; cumpre verificar o contexto histórico cultural em que se situa, e, por fim, trazer à tona a nossa relação com os textos analisados.
3.5. O PÓLO PSICOLÓGICO: a personalidade marcante de Niemeyer
Ao começar a escrever de modo sistemático, em 1955, Oscar Niemeyer já contava quarenta e sete anos de idade. Sua arquitetura já ganhara destaque em diversas revistas internacionais bem como num livro em inglês de autoria de Stamo Papadaki. Se sua fama ia além-mares, por um lado, Niemeyer só veio a conhecer a Europa em 1954. Esta viagem, já relatada em trechos citados anteriormente, foi também um operador decisivo para sua mudança de atitude. Não só pelo contato direto que o arquiteto brasileiro teve com interlocutores europeus, mas também pela oportunidade que teve de conhecer cenários urbanos e edifícios históricos que despertaram-no para a permanência das formas arquiteturais ao longo do tempo, como testemunhos de uma época. O estatuto da beleza, como já vimos, só lhe era explicado a partir do gesto criador inicial livre das amarras da razão, como já o descreveu Oscar. O exemplo mais recorrente usado para Niemeyer para justificar esta interpretação da história é o Palácio dos Doges, em Veneza:
(…) o Palácio dos Doges – obra prima da arquitetura de todos os tempos – com suas esplêndidas arcadas cheias de arabescos, destinadas a criar um crontraste violentocom suas paredes plenas e pesadas dos andares superiores. E ocorreu-me, então, como seria curiosa uma conversa do autor dessa maravilha com os arquitetos puristas de hoje, e como ele se surpreenderia vendo a arquitetura fria e limitada que realizam, sem um toque de imaginação, num período em que a técnica, muito mais adiantada lhes permite todos os devaneios. “[41]
A respeito deste drama e desilusão internos em que Niemeyer sempre parece ter vivido pouco ou nada podemos deduzir além do que ele mesmo relata em seus escritos. Sabe-se que é culto. A simplicidade de seus textos pouco tem a ver com ignorância e em muito se relaciona com a simplicidade trabalhada de seus projetos:
Lembrava Rodrigo [Melo Franco Andrade] a me dizer: ‘Oscar, leia os gregos e os clássicos protugueses’. E li. Li muito. Li como quem nada sabe e tudo quer aprender (…) Não tinha pretensões literárias. Queria apenas poder explicar meus projetos de forma clara e simples.[42]
O limite desta abordagem situa-se próximo de nós. Se o Niemeyer mesmo não nos desvela diretamente seu mundo psicológico, corremos o sério risco de pretender uma congenialidade falsa com ele ao tentar estabelecer uma lógica dedutiva a partir de poucas pistas. Impõe-se ainda o limite da presente abordagem: trata-se de um olhar direcionado à arquitetura e não à psicologia o nosso. De pouco nos serviria aqui uma abordagem demasiado psicológica do autor.
Cabe-nos apenas traçar um panorama dos acontecimentos que lhe rodeavam o ano de 1955.
Ingressado no Partido Comunista do Brasil desde o pós-guerra, Niemeyer mantém suas convicções políticas até hoje, contando já dez anos da queda do regime soviético. E se o faz é porque é grande sua preocupação com a sociedade para a qual ele elabora os seus projetos. A esperança em dotar a arquitetura de um sentido de transformação social é patente apenas no texto da Oeuvre Compléte, de Corbusier, escrito em 1946:
Os arquitetos devem ser os elementos ativos no momento que atravessamos, familiarizando-se com os problemas de nossa época e, principalmente unindo-se de modo decisivo àqueles que, trabalhando sinceramente para o progresso de noso país, nos propõem um programa justo e verdadeiramente baseado nas reivindicações mais essenciais de nosso povo, capaz de garantir à nossa profissão seu caráter humanitário indispensável[43]
Sua visão em 1958 já nos dá conta de um quadro psicológico mais melancólico:
Sentia com isso um vago desânimo, desânimo que me levava a considerar ingênuos os que se entregavam à arquitetura de corpo e alma, como se construíssem obras capazes de perdurar. Embora nunca me tivesse desinteressado da profissão, encarava a arquitetura como complemento de coisas mais importantes, e mais diretamente ligadas à vida e à felicidade dos homens. Ou ainda, como costumava dizer, como um exercício que se deve praticar com espírito esportivo – e nada mais [44]
Porém, a sua mudança de atitude mesma ainda indicava uma esperança numa arquitetura mais justa para com a sociedade desigual em que vivemos. Sua desilusão completa veio com o tempo, após o seu exílio voluntário no exterior em 1967. Seu texto de 1979 é típico dessa desilusão:
Apenas no seu aspecto social a arquitetura me deprime. Sentindo como é discriminatória nesse mundo injusto em que vivemos. Não se trata de um problema de arquitetura, nem mesmo da forma arquitetural. Trata-se de um problema social no qual a arquitetura não pode intervir, pois dele é simples resultante. É claro que só a mudança da sociedade lhe garantirá o conteúdo humano desejado e que não é na prancheta, mas na luta política que o arquiteto poderá atuar e contribuir. [45]
Um segundo fato que podemos somar a este panorama é a experiência de Niemeyer em Brasília, onde, de tudo isolado, lhe foi possível estabelecer um distanciamento de suas próprias obras para que pudesse realizar a autocrítica desferida em 1958.
A visão deste quadro nos dá o biógrafo de Niemeyer Marcos Sá Correia:
Começou a hora sertaneja da construção de Brasília. Colheu o escritório no apogeu e praticamente o fechou por quase três anos no Rio de Janeiro. Niemeyer estava cumprindo contratos caros (…). Entrava dinheiro a rodo quando o escritório foi armar barracas e teodolitos na macega do Planalto Central. (…) Lá se foram os arquitetos cariocas a desbravar o sertão. [46]
Que podem ser complementadas pela visão do próprio Niemeyer:
Não podemos dizer que as condições encontradas fossem satisfatórias. Não tínhamos luz, nem água quente, e as refeições, servidas nas obras, deixavam muito a desejar. As chuvas intensas cobriam as estradas de lama, dando-nos, habituados ao asfalto, um grande mal-estar. Contudo, prevaleceu, com surpresa, um entusiasmo, uma determinação e um espírito esportivo que afastavam dificuldades, reunindo-nos à noite, após o trabalho, em longas e reconfortantes conversas. Sentíamos, por outro lado, que colaborávamos numa obra importante: uma cidade que surgia como uma flor naquela terra agreste e solitária. (…) Sabíamos das incompreensões involuntárias que nosso trabalho provocaria: contra tudo lutamos resolutamente, certos de que somente assim daríamos a colaboração esperada, somente assim mo manteríamos dentro da unidade indispensável [47]
Além do panorama descrito nada mais podemos conjecturar, pelas razões já descritas. Estes são os dados biográficos de Niemeyer por volta de 1955. Ou seja: somem-se às críticas dos estrangeiros à sua arquitetura dois fatos marcantes – determinantes assumidos de sua nova atitude diante da arquitetura : sua viagem à Europa e a experiência do isolamento em Brasília, onde concentrava esforços rumo a uma nova síntese.
3.6. O PÓLO CONTEXTUAL: a atitude de Niemeyer dentro do mundo da arquitetura.
A visão de Niemeyer do cenário mundial em que se situava sua arquitetura naquele momento era bastante clara:
Vai longe o tempo em que a arquitetura se apresentava como um problema unicamente ligado à função. A ‘máquina de habitar’ de Le Corbusier representa um período de combate, um período de transição forçada, no qual uma atitudeortodoxa, contra a incompreensão da época, se tornava indispensável. Hoje, vencida esta etapa, voltou a arquitetura à sua condição natural e eterna de elemento criador de vida, beleza emoção. De fato, não basta à arquitetura se apresentar como solução prefeita de problemas técnicos e funcionais. Uma simples visita ao passado mostra-nos que as obras que ficaram e que a todos surpreendem e emocionam são obras da sensibilidade e poesia. E, na verdade, diante desses monumentos de graça e beleza, passam a plano secundário, para as épocas futuras, características funcionais e utilitárias. (…) Evidentemente, com isso, não pretendemos assumir uma atitude idealista – de arte pela arte -, cujo conteúdo reacionário sabemos recusar, mas reconhecer que diante dessas obras imortais e consagradas o que atua em nossos sentidos é precisamente a beleza, o inesperado e a harmonia da solução plástica. [48]
Esta visão do panorama da década de 50 como um período de novo fôlego e renovação dos ideais da vanguarda da arquitetura moderna era compartilhada por diversos autores, nacionais e estrangeiros. Dentre os primeiros podemos destacar , por exemplo Eduardo Mendes Guimarães Jr., cujo livro Forma e Função na Arquitetura Contemporânea, de 1954, tem como conclusão a necessidade de uma nova síntese da arquitetura mundial – unindo as correntes primitivas, que ele ordena em conteudistas e formalistas – , da qual faria parte ativamente a arquitetura brasileira:
Aqueles que precederam a atual geração de arquitetos foram bons e generosos. Havendo desbravado em carrascal ingrato duas largas trilhas paralelas, legaram – conjuntamente com a riqueza dos ensinamentos de sua experiência – o trabalho muito menos árduo de uni-las, formando uma estrada ampla, inexoravelmente orientada para a honestidade artística e para o bem da espécie humana [49]
Dentre os autores estrangeiros, destaca-se Siegfried Giedion, em seu livro: Espaço, Tempo e Arquitetura, de 1940 e tradução para o espanhol em 1955, com o seguinte subtítulo acrescido: O Futuro de uma Nova Tradição. Do título mesmo já é possível depreender o direcionamento do autor:
Ao conjunto das muitas causas que a todo momento são invocadas para explicar o caos presente [a segunda guerra mundial], existe uma fundamental que é freqüentemente esquecida: os conhecimentos técnicos ainda não foram humanizados e impregnados por um sentimento equivalente [50]
Assim, Niemeyer procura fixar seu discurso dentro deste espírito de renovação do movimento moderno no mundo abrindo sua visão para uma aboirdagem inclusiva, como já vimos, e não exclusiva, como era o caso de diversos críticos de sua obras que o faziam baseados em princípios funcionalistas radicais, próprios de uma abordagem estreita dos preceitos de Le Corbusier e Mies van der Rohe, como foi o caso de Philip Johnson: “apaixonado discípulo de Mies van der Rohe, foi um dos primeiros a nos criticar”[51].
Tendo suas obras de Brasília criticadas com o mesmo teor dos comentários anteriores à sua mudança de postura, Niemeyer volta a se manifestar em 1960, com um tom mais indignado, num artigo intitulado Forma e Função na Arquitetura:
Exigem, por exemplo, que as soluções se contenham em plantas simples e compactas, visando a volumes puros e geométricos – solução que às vezes adoto, mas que não aceito como um dogma – e para isso acomodam, dentro dessas formas pré-estabelecidas, programas complexos, que exigiriam, justamente para atender às razões funcionais que tanto defendem, partidos diferentes e recortados. E assim, para manter o purismo desejado, o purismo aparente, criam o verdadeiro formalismo, o formalismo mais grave e inconteste [52]
A este período inicial de críticas a Brasília, sobreveio o Regime Militar, encerrando temporariamente as atividades da revista Módulo e forçando o comunista Niemeyer ao exílio. Esta nova condição tornou-o – agora sim – resistente às críticas que dirigiam à sua arquitetura, pois dela ele dependia para manter-se no exterior. A síntese deste sentimento bem a faz ele mesmo na célebre frase: paralizado pela reação, eu segui para o velho mundo com minhas desilusões e minha arquitetura”[53]
Ainda a respeito do contexto caberia falar da cena político-cultural brasileira como um todo, como o faz de modo exemplar Miguel Alves Pereira em seu Arquitetura, Texto e Contexto. Oscar Niemeyer rara vez se situa em relação a este contexto direto, cabendo a nós, portanto, silenciar no âmbito do presente trabalho. Mesmo assim, é pertinente verificar como Pereira expõe esta falta de relação entre o contexto imediato político-cultural e o discurso de Niemeyer:
Pelo estudo dos temas do discurso de Oscar Niemeyer, ficamos sabendo da fragilidade do uso da visão marxista para explicar o sempre procurado equilíbrio entre o discurso e o conteúdo social e sua obra. (…) Seu posicionamento político e o conteúdo social de sua obra levaram-no ao enfrentamento de sérios dilemas: que arquitetura fazer? Assumir inteiramente as tarefas da revolução social ou fazer a arquitetura possível, numa sociedade capitalista? (…) Se Niemeyer perdeu a oportunidade de aparar-se no pensamento marxista não ortodoxo [i.e.Marcuse] a esquerda brasileira perdeu a oportunidade de enfrentar o desafio proposto pelos seus textos, suas dúvidas, seus temas e paradigmas. A grande contribuição de Oscar Niemeyer ao pensamento da arquitetura brasileira reside na elaboração de seu extenso e significativo discurso. Discurso este quase sempre negligenciado ou esquecido por críticos, professores, arquitetos ou estudantes, sob a pressão da expectativa do ‘espetáculo arquitetural’ proposto pela exuberância plástica de sua obra. [54]
4. O PÓLO SUBJETIVO: conclusão
A crítica contemporânea à arquitetura de Niemeyer é, em sua maioria, superficial. Se, por um lado o excesso de reverências e mesuras impede o crítico brasileiro de ter uma visão mais acertada da obra do arquiteto, por outro a simples ignorância acerca dos projetos de Niemeyer impede o crítico estrangeiro de tecer algum comentário proveitoso sobre a obra do arquiteto brasileiro. Some-se a isso, como bem o frisou Pereira, a extrema dificuldade de Oscar Niemeyer em aceitar críticas; o que tampouco colabora para a mudança deste panorama.
Mesmo a compreensão de suas obras dentro de uma perspectiva histórica torna-se árdua, haja visto o mar de comentários rasos que cercam seus trabalhos. Por este motivo, dediquei-me neste trabalho à abordagem direta de seus textos. Se bem não me foi possível maior profundidade de abordagem, devido ao reduzido escopo deste trabalho, acredito terem-se aberto diversas portas para a compreensão do sentido de sua mudança de atitude.
Demonstrações nos dois sentidos não faltam: no caso da crítica estrangeira, tomemos, por exemplo, a ingenuidade de Kenneth Frampton ao afirmar: Niemeyer rompeu com a funcionalidade informe na qual as formas de suas plantas fluidas haviam se baseado para concentrar-se na criação da forma pura. Ou seja: aproximando-se da tradição neo-clássica.[55] Aqui, Frampton, confunde pureza formal com forma pura; confunde ordenação clássica com tradição neo-clássica. Se as obras de Brasília assumem uma ordenação clássica ou cósmica, isso é próprio de uma interpretação sensível do caráter da paisagem do planalto central, mais do que qualquer imposição de um vocabulário neo-clássico.
Creio haver demonstrado, através da interpretação dos textos de Niemeyer, como a crítica, associada a outros fatores pessoais e circunstanciais, contribuiu para a mudança de seu modo de fazer arquitetura. Creio ser sido possível também detectar como causa da resistência posterior de Oscar Niemeyer às críticas o seu exílio no exterior. Aí surge um ponto de discordância crucial com a visão de Pereira ao analisar os textos de Oscar Niemeyer: ao tomar os textos do arquiteto como um todo, permeado por elementos constantes e recorrentes – temas e paradigmas – Miguel Pereira incorre na deficiência de desconsiderar a evolução histórica destes textos, e como Niemeyer dialogou com seus críticos nos passos iniciais de seu discurso, ao contrário do que conclui Pereira em seu livro.
Na importância devida ao texto por Niemeyer em seu processo de trabalho, vemos talvez a deficiência de uma abordagem do texto de arquitetura puro, como produção de conhecimento. Esta chave que Oscar nos dá para o entendimento de seus textos, bem como o teor mesmo destes textos, contribui para dissipar a névoa que paira hoje sobre os textos teóricos de conteúdo normativo da arquitetura. A complexificação excessiva dos problemas da arquitetura em arquitetos como Peter Eisenman ou Daniel Libeskind acaba por desvirtuar os objetos arquitetônicos mesmos. Estes últimos, em sua forma construída final apelam para motivos ridículos puramente decorativos e que pouco têm a ver com a arquitetura, como os ícones da cadeia de D.N.A. (no Biocentrum de Eisenman) ou diagramas unindo casas de desaparecidos políticos no mapa da cidade (como no caso do Museu Judaico em Berlim, de Libeskind).
A chave de Niemeyer é valiosa para que o foco da arquitetura volte para dentro de si mesma e seus problemas específicos: pois o próprio Eisenman tem que resolver seus edifícios funcionalmente para que possa vencer os concursos de que participa.
É importante aqui fazer uma distinção: quando Niemeyer desqualifica o funcionalismo, o faz não para substituir seus parâmetros racionais por valores externos à arquitetura, mas para adicionar a estes valores racionais (de modo inclusivo), outros valores que dizem respeito ao objeto concreto mesmo: harmonia, unidade etc.
Niemeyer nos dá ainda outra chave importante: a fazer teórico-prático indissociado, convertendo o criador em intérprete constante de sua obra, estabelecendo um jogo aberto, passível de ser jogado por outros arquitetos, mas capaz também de levar a população a compreender este jogo, trazendo-a para dentro dele e expondo seus operadores para que cada indivíduo, ao tomar contato com sua obra, possa entender as regras do jogo jogado.
Tais são os caminhos que a arquitetura atual trilha: os da exclusão de problemas próprios do objeto arquitetural concreto rumo a especulações teóricas externas a ele, convertem-no num jogo hermético que em nada tem a ver com os operadores próprios do espaço concreto, que constitui a matéria de que é feito o jogo hermenêutico da arquitetura.
Vemos então o resultado da opacidade excessiva da linguagem da arquitetura atual: o público, ao não compreender o objeto arquitetural, por ver-se como elemento externo ao jogo estabelecido pelo arquiteto, acaba por des-conhecer o objeto arquitetural, deixando de enxergar sentido na arquitetura mesma. Torna-se o arquiteto um mero acessório no processo de produção do espaço.
Urge uma recuperação dos operadores internos da arquitetura como parte primordial dos discursos de vanguarda, para que eles possam ser redescobertos e redefinidos, pois o esquecimento desses fatores tem-se mostrado recorrente, e o preço desta ausência é o fim da profissão.
[1] BRANDÃO, 1999a:117
[2] Posteriormente, estes textos foram agrupados num pequeno volume publicado pela Editora Vozes:
NIEMEYER, Oscar. Como se Faz Arquitetura. Petrópolis: Vozes, 1986. 82p.
O qual, por razões práticas, será referido em termos de bibliografia ao tratar destes textos.
[3] PEREIRA, Miguel Alves. Arquitetura, Texto e Contexto: o Discurso de Oscar Niemeyer. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. 1997p.
[4] PEREIRA, Miguel , 1997. p.20
[5] BRANDÃO, C.A. Leite. Introdução à Hermenêutica da Arquitetura. Topos – Rev. de Arquitetura e Urbanismo. Belo Horizonte, v.1, n.1, p. 113-123, jul/dez 1999.
[6] NIEMEYER, 1986. p.71
[7] PEREIRA, 1997. p.115
[8] NIEMEYER, 1946.
[9] REPORT ON BRAZIL. Architectural Review. vol. 116, n.694, p.234-240, out. 1954.
[10] REPORT ON BRAZIL. p.238, out. 1954.
[11] REPORT ON BRAZIL. p.238, out. 1954
[12] REPORT ON BRAZIL. p.238, out. 1954
[13] REPORT ON BRAZIL. p.238, out. 1954
[14] citado no artigo MAX BILL E A ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA. Arquitetura e Engenharia. n. 26 . p.18
[15] MAX BILL E A ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA. Arquitetura e Engenharia. n. 26 . p.18
[16] REPORT ON BRAZIL. p.239, out. 1954
[17] REPORT ON BRAZIL. p.240, out. 1954
[18] REPORT ON BRAZIL. p.237, out. 1954
[19] REPORT ON BRAZIL. p.237, out. 1954.
[20] MAX BILL E A ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA. Arquitetura e Engenharia. n. 26 . p.19.
[21] PEREIRA, 1997. p.109.
[22] REVISTA MÓDULO. n.1, p46-47, 1955.
[23] REVISTA MÓDULO. n.1, p47, 1955.
[24] NIEMEYER, Oscar. Problemas Atuais da Arquitetura Brasileira. in MÓDULO, n. 4, pp.39-45, 1956.
[25] NIEMEYER, Oscar. Problemas Atuais da Arquitetura Brasileira. in MÓDULO, n. 4, pp.39-45, 1956.
[26] NIEMEYER, Oscar. Problemas Atuais da Arquitetura Brasileira. in MÓDULO, n. 4, pp.39-45, 1956.
[27] NIEMEYER, Oscar. in MÓDULO ESPECIAL, p.34, 1985.
[28] NIEMEYER, Oscar. Museu de Arte Moderna de Caracas. in MÓDULO, n. 4, pp.39-45, 1956.
[29] NIEMEYER, Oscar. Considerações sobre a Arquitetura Brasileira. in MÓDULO, n. 7, p.8, 1956.
[30] NIEMEYER, Oscar. Considerações sobre a Arquitetura Brasileira. in MÓDULO, n. 7, p.10, 1956
[31] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.3, 1958.
[32] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.3, 1958.
[33] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.3, 1958.
[34] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.4, 1958.
[35] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.4, 1958.
[36] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.4, 1958.
[37] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.4, 1958.
[38] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.4, 1958.
[39] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.5, 1958.
[40] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.5, 1958.
[41] NIEMEYER, Oscar. Contradição na Arquitetura. in MÓDULO, n. 31, p.17, 1962.
[42] NIEMEYER, 1998. pp. 61-62
[43] NIEMEYER 1946. p.90
[44] NIEMEYER, Oscar. Depoimento. in MÓDULO, n. 9, p.3, 1958.
[45] NIEMEYER, Oscar. Metamorfose. in PAMPULHA, n. 1, p.10, nov-dez, 1979.
[46] CORREIA. 1996. p.34
[47] NIEMEYER, Oscar. Minha Experiência de Brasília. in MÓDULO, n. 18, p.14, 1961.
[48] NIEMEYER, Oscar. Museu de Arte Moderna de Caracas. in MÓDULO, n. 4, pp.41-42, 1956.
[49] GUIMARÃES. 1954. p.303
[50] GIEDION, 1955. p.790.
[51] NIEMEYER, 1993 . p. 38.
[52] NIEMEYER, Oscar. Forma e Função na Arquitetura. in MÓDULO, n. 21, p.4, 1960.
[53] NIEMEYER, Oscar. in MÓDULO ESPECIAL, , p.35, 1985.
[54] PEREIRA, 1997. p 180.
[55] FRAMPTON, 1980. p.256