Domésticas: ainda os mesmos alojamentos de 4m² (no Brasil)

Danilo Matoso Macedo
– ago. 2020 –

Na última semana, O Partisano publicou um artigo sobre os apartamentos de 4m² existentes na estrela do capitalismo da Ásia, a Coreia do Sul. O retrato daquela realidade precária causou espanto entre nossos leitores. Trata-se porém de algo relativamente comum também no Brasil. São os “quartinhos de empregada”, praticamente exclusivos de nossa cultura, e ainda bastante presentes em nossas moradias.

Nosso país ainda tem a maior população de domésticas do mundo. Em 2015, contavam-se mais de 6,2 milhões de trabalhadores: 5,7 milhões deles mulheres e 3,7 milhões negras ou pardas. O trabalho doméstico é fruto do êxodo rural e da expansão urbana que acompanha o processo de desenvolvimento do país – juntamente ao trabalho masculino na construção civil, é a porta de entrada da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho das grandes cidades. Sua expansão se dá na mesma medida em que as classes médias e alta acumulam mais riqueza.

Assim como as favelas, o trabalho doméstico é parte naturalizada da equação social que produz a desigualdade no Brasil. Em 1977, em intercâmbio nos Estados Unidos, o jovem Aécio Neves – futuro governador de Minas Gerais e candidato à Presidência da República em 2014 – declararia despreocupadamente ao The Franklin News-Record: “Todo o mundo no Rio tem uma, senão duas, empregadas, uma para cozinhar e outra para limpeza. Eu nunca fiz minha própria cama”. Tal relação íntima é facilitada pela coabitação: cerca de 1% das domésticas dorme no local de trabalho. Como lembra a pesquisadora Luísa Sopas Brandão, morar no emprego é optar “entre o mundo do ‘asfalto’ e o da ‘favela’”.

O motor da casa

A arquitetura concretiza – institucionaliza e normaliza – as estruturas de nossa sociedade que manteve as mucamas – outrora habitantes das senzalas em fazendas junto aos seus senhores. Segundo Edite Carranza, professora no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo, tais alojamentos têm suas origens nas casas bandeiristas do século 17, quando o alojamento dos escravos era construído junto à cozinha na parte posterior das edificações.

Nas cidades, durante o Império, o quarto de empregada passou a ocupar os fundos dos lotes – às vezes com entrada independente. Em seu “Quadro da arquitetura no Brasil”, o professor da USP Nestor Goulart dos Reis Filho explica: “Os fundos e, por vezes, a lateral mais estreita, como áreas de serviço, eram locais de completa desvalorização social, verdadeiro desprestígio, quase tabu, herdado dos tempos em que ali estariam os escravos e acomodando agora os filhos daqueles”. Lúcio Costa explicaria a origem desses cômodos em seu “Depoimento de um arquiteto carioca” de 1951.

máquina brasileira de morar, ao tempo da Colônia e do Império, dependia dessa mistura de coisa, de bicho e de gente, que era o escravo. Se os casarões remanescentes do tempo antigo parecem inabitáveis devido ao desconforto, é porque o negro está ausente. Era ele que fazia a casa funcionar – havia negro para tudo, – desde negrinhos sempre à mão para recados, até negra velha, babá. O negro era esgoto; era água corrente no quarto, quente e fria; era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador automático, abanava que nem ventilador.

Mesmo depois de abolida a escravidão, os vínculos de dependência e os hábitos cômodos da vida patriarcal de tão vil fundamento, perduraram, e, durante a primeira fase republicana, o custo baixo da mão-de-obra doméstica ainda permitiu à burguesia manter, mesmo sem escravos oficiais, o trem fácil de vida do período anterior. […] Só mais tarde, com o primeiro pós-guerra, a pressão econômica e a consequente valorização do trabalho, despertaram nas “domésticas” a consciência da sua relativa libertação, iniciando-se então a fase da rebeldia, caracterizada pelas “exigências absurdas” (mais de cem mil réis!) e pela petulância no trato ao invés da primitiva humildade.

O cenário pintado pelo arquiteto era otimista. Na verdade, Costa justificava ali a prática da Arquitetura Moderna Brasileira, que incorporava as feições das chamadas “vanguardas europeias” e suas machines à habiter feitas para os operários do Velho Mundo, mas mantinha em muitas de suas plantas o programa escravista secular. Os edifícios em altura não seriam exceção, e o quarto de fundos, chamado de “DCE”, seria neles mantido muito além da República Velha – e mesmo nas arquiteturas de griffe.

No jargão do mercado imobiliário, DCE não tem nada a ver com movimento estudantil. A sigla corresponde a “Dependência Completa de Empregada”. Por completo não se entende sequer o Existenzminimum preconizado pelos arquitetos da década de 1920 – correspondente a já exíguos 15m² por pessoa – mas sim um quarto de 3-4m² e um sanitário de 1,5m²: um terço menos que o mínimo. Mesmo com a redução da área útil dos apartamentos, o “quartinho de empregada” persistiu com dimensões muito aquém do “mínimo” apesar das tentativas dos autores dos Códigos de Obras e Edificações de nossas cidades. Essas normas definem há um século áreas mínimas não apenas dos cômodos mas também suas condições de iluminação e ventilação. O problema é resolvido aprovando-se o quarto como “depósito”, a ser qualificado e comercializado como DCE posteriormente.

“Aqui não entra luz”

Com griffe ou em “depósitos”, a vida e o trabalho em tais condições evidentemente não são fáceis. Em nota técnica recente publicada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), as pesquisadoras Luana Pinheiro, Carolina Tokarski e Marcia Vasconcelos lembram

dos abusos e dos assédios morais e sexuais a que essas trabalhadoras estão submetidas, da desvalorização e da estigmatização social da profissão, das jornadas exaustivas e mal remuneradas (as trabalhadoras domésticas, ainda hoje, recebem, em média, menos que um salário mínimo mensal), das longas trajetórias percorridas em transportes públicos lotados no deslocamento casa-trabalho-casa, e na “troca” cruel de tempo e esforços que dedicam ao cuidado dos outros em detrimento do tempo e da “energia” que não possuem para o cuidado de si e de seus próprios familiares.

A cineasta Karoline Maia, filha de uma empregada doméstica, está produzindo um filme sobre as penúrias que vivenciou: “o quartinho da empregada fica sempre nos fundos da casa, ao lado da cozinha. ‘Ela é como se fosse da família’, mas espera todo o mundo jantar para comer o que sobrou. Dorme depois, acorda antes”. Maia, que cresceu já nesse século convivendo com a mãe em tais condições, resume no título de seu filme a perspectiva de vida das domésticas materializada nos quartos de empregada: “Aqui não entra luz”.

A doméstica confinada ao “quartinho” persistiu porque a legislação trabalhista brasileira reforçava o quadro social desigual. Até sete anos atrás, mesmo as trabalhadoras domésticas com carteira assinada não tinham direito a FGTS, hora extra ou limite de horas semanal por permanecer 24h no local de trabalho. Com a Emenda Constitucional 73/2013, tais direitos seriam conquistados – o que pelo menos no papel equipara as domésticas aos demais trabalhadores. Cinco anos depois, o mercado declarava o processo de extinção dos “quartinhos”. A reforma trabalhista porém traria a modalidade de “trabalho intermitente” – na prática, uma possibilidade legal de trabalho precarizado –, abrindo uma possibilidade real de retorno das peças em nossas residências.

Como em todos os outros campos do trabalho, a pandemia de Covid-19 trouxe ainda mais dificuldades às domésticas. Muitas são constrangidas a seguir trabalhando. E se os seus empregadores não desejam que sigam circulando em trens e ônibus lotados, dormir no local de trabalho volta a ser uma solução – e uma solução especialmente difícil se as aulas de seus filhos estão suspensas. Esse complicado e secular xadrez social e trabalhista leva a situações críticas como a morte de Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que morreu ao cair de uma janela quando estava sob os cuidados da patroa de classe alta enquanto a mãe prestava serviços para ela.

Se na Coreia do Sul e em muitos outros lugares do mundo as condições precárias de moradia em ambientes abaixo do mínimo são desumanizadas, no Brasil elas são domésticas. E se o capital é hábil em despersonalizar as relações de produção, nossa cultura escravagista garante um regime de exploração naturalizado sem maior constrangimento, nossos endereços, rostos, nomes e sobrenomes. Ou é sinal de que nosso percurso será mais árduo que em outros países, ou de que, quando a revolta vier, será ainda mais radical. A luz há de entrar.


Texto publicado originalmente no site O Partisano.

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