Danilo Matoso Macedo
– maio.2020 –
Covid-19. Uma pandemia coloca uma grande parte da população em quarentena. De uma semana para outra, milhões de pessoas que mal paravam em casa se viram ali aprisionados. Aquele local de dormir e visitar nos finais de semana se tornou uma espécie de cela monástica em que, solitários ou não, muitos prestadores de serviços passaram a laborar em regime de clausura. O que era descanso passou a ser trabalho, o que era conforto passou a ser aperto. Nossas cidades são pródigos instrumentos de exploração do trabalho, e as condições precárias de moradia são parte desse jogo em que o mínimo de espaço e de conforto é muitas vezes romantizado.
Cortiços

Em seu livro As origens da habitação social no Brasil (Estação Liberdade, 1998), Nabil Bonduki – professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, FAU-USP e ex-vereador de São Paulo pelo PT – relata que a segregação espacial e a precarização da moradia decorrente da falta de habitação para todos são decorrentes da expansão urbana e da abolição da escravidão, somados ao intenso fluxo de imigrantes europeus. O Relatório da Comissão de Saúde e inspecção das habitações operárias e cortiços de Santa Ephygenia, de 1894, elaborado pelo médico Cesário Motta, relata a tipologia do hotel-cortiço:
Uma espécie de restaurant onde a população operária se aglomera à noite para dormir, já em aposentos reservados, já em dormitórios comuns. Quase sempre os aposentos são pequeníssimos: 2,5m de frente por 3m de fundos, ocupados por operários sem família. A lotação que se lhes dá raro excede do normal: entretanto que a realidade é bem diversa, sabido como o acúmulo de gente nesses lugares excede de muito os limites do razoável.
O relatório aponta ainda a existência de outros quatro tipos de habitação proletária: as casas de cômodos, “prédios de sobrado convertidos em cortiço”; os cortiços improvisados nos fundos do comércio; o cortiço-pátio, que “ocupa comumente uma área no interior do quarteirão: quase sempre um quintal e um prédio onde há estabelecida uma venda ou tasca qualquer” onde “raramente cada casinha tem mais de 3m de largura, 5 a 6m de fundo e altura de 3m a 3,5m”; a casinha “pequena e insuficiente para a população que abriga”.

A revolução pode ser evitada
Friedrich Engels (1820-1895) já desvendara a função da habitação urbana precária em seus ensaios Sobre a questão da moradia, publicado em artigos no periódico Volksstaat entre 1872 e 1873: é necessário ao capitalismo manter parte da população morando mal ou em lugares distantes. É uma das engrenagens do sistema, e não um efeito colateral. A permanente necessidade de lutar pela moradia digna induz ao endividamento do trabalhador – quer pelos aluguéis, quer pelas prestações da casa própria – e força sua dependência de seu subemprego.
Nesse cenário de miséria próprio do capitalismo, a oferta de unidades habitacionais minúsculas pela própria burguesia – para além dos improvisos dos pequenos proprietários dos cortiços – era natural. A demanda por soluções devidamente maquiadas, perfumadas e empacotadas pelo próprio mercado ganharia contornos de urgência após a Revolução Russa de 1917, quando as políticas sociais reformistas se tornaram instrumentos fundamentais de contenção dos processos revolucionários. Não por acaso, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965) concluiria seu livro mais influente, Por uma arquitetura (1922), com a sentença: “Arquitetura ou Revolução. A revolução pode ser evitada”.
O mínimo
Ao longo da década seguinte, de fato, alguns dos principais grupos de arquitetos do que hoje se conhece como vanguardas europeias se dedicaria com afinco a elaborar soluções para as políticas habitacionais estatais implantadas, por exemplo, pela República de Weimar, na Alemanha – sob forte influência das próprias escolas soviéticas de arte e arquitetura. A habitação popular se tornaria um tema central de investigações, até mesmo porque muitos profissionais da área estavam envolvidos em programas habitacionais estatais – caso, por exemplo, da presença do arquiteto Ernst May (1886-1970) na prefeitura de Frankfurt.

Sob sua direção, se construiriam 15 mil unidades habitacionais na cidade alemã. Muitas delas com a ultra-eficiente cozinha tipo laboratório desenhada por Margarete Schütte-Lihotzky (1897-2000), a “Cozinha de Frankfurt”, que seria o protótipo das cozinhas planejadas usuais de hoje. Preparar, cozinhar, lavar, servir no dia a dia passaram a ser atividades encaradas segundo padrões ergonômicos, visando o mínimo de movimentação e a máxima economia.
À medida em que se aproximava a grande crise econômica do fim da década, tornava-se mais urgente a solução ao problema da habitação proletária. Em 1929, ano da quebra da bolsa de Nova York, realizou-se, não por acaso, em Frankfurt, o 2º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – Ciam, com o tema “A moradia para o mínimo nível de vida” (Wohnung für das Existenzminimum). Segundo a pesquisadora da FAU-USP, Sarah Feldman, especial ênfase foi colocada na relação entre arquitetura e equipamentos públicos complementares, onde “creches, áreas de esportes, laboratórios e lavanderias são incorporados na concepção de habitação, e a verticalização e o adensamento são entendidos como elementos estruturais de organização do espaço da cidade”. Um dos participantes do encontro fora Le Corbusier, que no mesmo ano viria à América Latina e ao Brasil, proferindo palestras e buscando – naturalmente – granjear a execução de algum de seus inúmeros projetos utópicos.

Vivendo em células
Suas conferências seriam reunidas no livro Precisões sobre um estado presente da Arquitetura e do Urbanismo, e uma delas teria por tema “Uma célula na escala humana”, em que o arquiteto esgrime a inventiva “metáfora do transatlântico”, segundo a qual um edifício ou um bairro poderia se organizar tal qual uma grande embarcação. Com restaurantes, lavanderias e limpeza coletivizados, a habitação se resumiria ao dormitório, reduzido então a um mínimo:
Aqui está meu leito, semelhante a um divã de grande categoria. Dormirei nele, nele farei um pouco de sesta, ao passar pelos Trópicos. Há um segundo leito, mas estou sozinho. Aqui está o armário com espelho […]. Este armário poderia ser infinitamente melhor resolvido; ele é, no entanto, muito útil. Diante dele, entre os leitos, a secretária (ou penteadeira, como quiserem), com três gavetas bem preciosas; um tapete felpudo, agradável aos pés descalços (muito agradáveis, os pés descalços!). Abro uma pequena porta: um vasto lavabo, um armarinho para a roupa usada, gavetas para os artigos de toalete, espelhos, inúmeros ganchos, luz elétrica em profusão.
Abro uma segunda porta: uma banheira, um bidê, um vaso sanitário, um chuveiro, o chão com escoamento direto da água.
Disponho de um telefone, ao alcance da cama ou da secretária.
É tudo. Dimensões: 3 metros por 3 metros e 10 centímetros (para o quarto). Para o conjunto, 5,25 X 3 m = 15,75 m².
Não nos esqueçamos destas medidas.
Trata-se de um belo golpe retórico. A mesma cela insalubre dos cortiços novecentistas se tornava agora um moderno, charmoso e aprazível camarote de luxo. O arquiteto – que por sua vez se inspirara nas celas do Mosteiro de Galuzzo, em Florença – forneceu argumentos aos publicitários para vender escassez como se fossem finesse. Evidentemente os custos de ter os serviços realizados por terceiros e as refeições em restaurantes não se comparam aos de desempenhar tais tarefas em casa – até os dias de hoje.

É uma ideia atraente, uma “maneira de pensar o urbanismo” que se tornaria hegemônica e que de pronto seduziria por aqui profissionais do quilate de Carmen Portinho (1903-2001) e Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), ambos à frente do Departamento de Urbanismo da Prefeitura do Distrito Federal (Rio de Janeiro, na época), resultando na interessante empreitada do conjunto de Pedregulho, em São Cristóvão. Também Oscar Niemeyer (1907-2012) chegaria a concretizar tais unidades mínimas em alguns dos apartamentos dos mega-edifícios Copan (1950), em São Paulo, e Conjunto Governador Kubitschek (1951), em Belo Horizonte. Desvalorizados comercialmente e proscritos por décadas, há pouco mais de 20 anos tais empreendimentos parecem ter finalmente assumido o ar de sofisticação de classe média que almejavam representar inicialmente. Não deixam de significar aquilo que são: indivíduos, casais e por vezes famílias compactados em caixas minúsculas de 40 metros cúbicos.
O xadrez da pandemia
A pandemia de Covid-19 tem como melhor estratégia global de prevenção o isolamento da população ou mesmo a quarentena (reclusão total) em casa, de modo a reduzir a velocidade de contágio. Como estaria a vida dos moradores de tais unidades de habitação voltadas ao “mínimo nível de vida”? Seria suficiente à sanidade mental o mínimo sem a complementação dos serviços comuns forçosamente sociais? Já em abril, quando se completava um mês do início das medidas restritivas, a melancolia da solidão parecia tornar-se mais aguda nessas pequenas células.

A fachada do Copan, num tabuleiro xadrez das unidades vistas de fora à noite, aparecia numa foto na Folha de S. Paulo em 5 de abril, com a legenda “isolados, moradores do edifício Copan, no centro de São Paulo, aparecem como se estivessem confinados em caixas coloridas”. Por outro lado, o fotógrafo João Pina publicou em 19 de abril uma matéria na revista National Geographic sobre o isolamento no edifício curvo de Niemeyer, concluindo que “ao conhecer homens, mulheres e crianças de todas as esferas da sociedade vivendo juntos no Copan, vi um forte senso de comunidade e solidariedade”.
O Mercado Imobiliário – substantivo próprio – também anda apreensivo. Não por conta da estética, do conforto, ou da eficiência, mas porque já preveem uma expansão do teletrabalho – o home office – após sua implementação forçada pela quarentena. É possível que a demanda por espaços comerciais diminua, e aumente a procura por imóveis maiores que o próprio do Existenzminimum: “Em capitais como São Paulo, onde imóveis com 40 m², 30 m², 20 m² e até 14 m² estão por toda a cidade, é fato que faltou espaço para o home office de muita gente”. O arquiteto Silvio Kozuchowicz, proprietário da SKR incorporadora, finalmente constata que houve “uma apologia excessiva à miniaturização dos imóveis”.
Se o mercado cada vez mais vendia quartos como se fossem apartamentos é também porque, desde o golpe de 2016, os programas habitacionais do Governo Federal já vinham sendo desmontados. Primeiro aumentaram o nível de renda daqueles habilitados ao crédito. Depois cortaram o crédito. Depois cortaram os programas de habitação. Nem Existenzminimum nem vivenda mínima: o negócio é deixar a moradia por conta do mercado.
Mas como o governo Bolsonaro pretende resolver a questão da habitação?
No último 3 de maio, o professor da FAU-USP, Rodrigo Queiroz, foi traído por seu inconsciente ao verificar que aquilo que à primeira vista em fotos lhe parecera um austero conjunto habitacional minimalista, na verdade era o recém-construído urnário de concreto no cemitério de Inhaúma, na periferia do Rio de Janeiro. Estranha relação de área entre vida isolada e morte. Questão de escala: um corpo precisa de pouco mais que um metro quadrado, “de bom tamanho, nem largo nem fundo”, nas conhecidas palavras de João Cabral de Melo Neto.”

Para além de questões estéticas, para além das previsões do mercado, para além das dores da alma – mortal ou imortal: apertamentos com eletricidade, gás, água e esgoto, certamente são mais salubres que a maioria das habitações de milhares de favelas de nossas metrópoles, e mesmo que as de cortiços remanescentes em seus centros urbanos. Em tempos de pandemia de Covid-19, como o mesmo Nabil Bonduki apontou em artigo recente ao falar de São Paulo:
Fiquem em casa, lavem as mãos, evitem as aglomerações, alimentem-se bem, usem máscara e álcool gel, orientações corretas, são uma ficção para os 33 mil moradores em situação de rua. […] Nos bairros centrais, 44 mil famílias vivem em cortiços e antigas quitinetes, onde a alta densidade se combina com um dos mais altos alugueis por metro quadrado do Brasil. […] Nas favelas, onde vivem cerca de 2 milhões de habitantes em 391 mil domicílios, a densidade populacional supera 1.000 hab./ha, as mais altas da cidade. […] “Ficar em casa” será duro para 27% dos paulistanos que, segundo o Censo de 2010, compartilham com três ou mais pessoas o mesmo dormitório; são 2,8 milhões em 780 mil domicílios. Destas, 243 mil habitantes compartilham o espaço de dormir com outros cinco ou mais pessoas.

Texto publicado originalmente no site O Partisano.